Cântico III — Ar’khem, o Reino das Areias Eternas

Nas terras onde o tempo dorme e o sol purifica, Freya caminha sob véus de luz e silêncio. Chamam-na A Mulher Sem Sombra, aquela cujo passo faz o deserto lembrar o que os deuses esqueceram. Entre ruínas que falam e ventos que rezam, ela busca respostas nas vozes da areia. Cada flor azul que nasce em seu caminho é memória de um fogo antigo — o mesmo que, um dia, fará o céu curvar-se diante dela.

CANTOS DE STRUMHERZ

hc

10/23/20253 min ler

Chamam-no Ar’khem, o Reino das Areias Eternas, onde o tempo adormece de olhos abertos e o vento fala com as pedras em voz de oração. É uma terra de ouro e silêncio, antiga demais para ser lembrada, esquecida demais para ser perdoada. Ali o sol não nasce, apenas desperta, e o calor não castiga: purifica. Foi por entre essas planícies que Freya caminhou. O fogo azul que um dia incendiara o mundo agora dormia sob a pele humana, transformado em luz mansa. Vestia véus de linho branco e ouro, e seus cabelos, tingidos de aurora, refletiam o céu em tons que nenhum olhar humano podia nomear. Suas asas, negras e amplas, carregavam nas pontas o vermelho da ruína antiga, e sobre a fronte girava uma auréola partida, como uma lembrança que se recusa a apagar.

O povo de Ar’khem chamou-a de A Mulher Sem Sombra, pois o sol, ao tocá-la, hesitava. Diziam que vinha do deserto nas noites em que o vento parava, e que o ar se curvava ao redor dela como se temesse o seu silêncio. Uns a veneravam, outros fugiam, e os poucos que ousaram fitá-la viram nos seus olhos o reflexo daquilo que não devia ser recordado. Freya não buscava adoração, apenas compreensão. Caminhava como quem escuta algo que o mundo ainda não aprendeu a ouvir. Sentia o chão pulsar sob seus pés e o deserto respirar com ela, como se o próprio Ar’khem reconhecesse o sangue que corria em suas veias.

Chegou então ao Vale de Ka’tur, onde o rio Nilo das Eras serpenteava negro e calado. As ruínas antigas ainda guardavam a voz dos sacerdotes que haviam desaparecido há séculos. Entre colunas quebradas, Freya tocou uma parede e a pedra respondeu em luz. Uma vibração atravessou-lhe o corpo, e uma voz ergueu-se do pó, não divina nem humana, mas ancestral: “O que dorme em ti recorda o que o mundo esqueceu. Caminha. O deserto ainda tem perguntas que só tu podes ouvir.” A pedra silenciou. Freya recuou, e o vento soprou diferente — como se Ar’khem tivesse exalado um segredo.

Nos dias que seguiram, o sono deixou de trazer descanso. Vinham-lhe sonhos sem forma: asas brancas caindo sobre um campo enevoado, um reflexo na água que não tinha rosto, e uma voz distante que falava sem palavras, firme como o tempo. Acordava com o coração em chamas, sem saber se o que sentia era saudade ou presságio. Passou por aldeias que a reverenciavam em silêncio e por oásis onde as flores se abriam e morriam ao nascer do sol. As pessoas deixavam-lhe pão e mel, mas ela aceitava apenas a estrada. O deserto era o seu espelho, e ela era o reflexo do que o deserto lembrava.

Ao entardecer, alcançou o Templo de Ne’mar, onde os escribas guardavam os rolos do tempo. À entrada, um velho cego aguardava. Quando ela se aproximou, ele sorriu, como quem reconhece uma presença há muito esperada. Tocou-lhe as mãos e murmurou: “És a lembrança do que os deuses tentaram apagar. Caminha sem sombra, pois é na ausência dela que se revela o eterno.” E antes que ela respondesse, o homem tombou suavemente, com o mesmo sorriso de quem termina a prece. Freya o cobriu com o véu e partiu.

O sol nascia em fogo e o deserto tremia de luz. A cada passo, o chão florescia por um breve instante em lírios azuis antes de voltar a ser areia. O vento ergueu-se e moveu o véu de seus cabelos, e por um momento o horizonte pareceu dobrar-se diante dela. À noite, acampou sob o céu limpo. As estrelas tremulavam como velas em oração e o ar cheirava a ferro e pó. Fechou os olhos e ouviu, entre o farfalhar distante das dunas, o som de um batimento que não era o seu. Por um instante, achou que o mundo respirava dentro dela.

O deserto, sábio e paciente, nada disse. Guardou o silêncio, pois sabia que aquela que caminhava trazia em si o eco do fogo e o presságio da chuva. E quando o vento soprou de volta, as areias moveram-se em círculo, desenhando uma marca efêmera sobre o chão — o selo de Ar’khem, o sinal de que a Mulher Sem Sombra havia passado por ali.

“Assim escreveram os cronistas de Ar’khem:

que ela caminhou como quem busca e encontra,

que suas pegadas floresciam e morriam,

e que o céu, por um instante, esqueceu-se de ser distante.”