Canto I - Cântico das Cinzas

Nas margens de um rio silencioso, uma criança é encontrada e o destino do mundo muda para sempre. Elisabeth cresce entre fé e mistério até que o fogo azul consome tudo e dela renasce Atemyia, a mulher entre o céu e o inferno, cujas lágrimas deram flores às cinzas. Do fim de uma vida, nasce o primeiro sussurro do Fluxo. E o universo canta o nome que um dia será lembrado como Freya....

CANTOS DE STRUMHERZ

Hc

10/23/20255 min ler

Em um dia de outono, quando o vento trazia o perfume das folhas caídas e o rio murmurava como se guardasse segredos, uma mulher caminhava pela margem acompanhada de sua filha.
Chamava-se Kiyra Beya-har, e desde a morte do marido vivia apenas com a jovem Brenna, a quem ensinava a força da fé e a humildade da vida. O luto ainda lhe pesava nos olhos, mas o coração buscava sentido em cada novo amanhecer.

Foi então, entre o som da correnteza e o crepitar das folhas secas, que Brenna avistou algo a boiar próximo à curva do rio — uma cesta de junco, envolta em sedas finas e amarrada com fitas de ouro. Kiyra, desconfiada, aproximou-se e puxou-a com cuidado. Quando afastou o pano, encontrou um bebé de pele alva e respiração leve, dormindo em silêncio, como se o próprio mundo temesse acordá-lo.
Não havia pegadas, nem vestígios de quem o deixara ali. Apenas o murmúrio da água e o sussurro do vento.

Kiyra ergueu o olhar para o céu e, num gesto de gratidão e espanto, sussurrou uma prece. Disse que, se fosse vontade divina, a criança permaneceria sob sua guarda.
Assim, mãe e filha levaram o cesto para casa e acolheram a criança como um presente de Deus. Deram-lhe o nome de Elisabeth, um nome vindo do Ocidente, que significava “prometida de Deus”. E o rio, testemunha silenciosa, continuou o seu curso, como se tivesse cumprido um desígnio antigo.

Os anos passaram, e Elisabeth cresceu sob o mesmo teto que a acolhera. Era uma criança doce, de gestos suaves e olhar sereno, mas havia nela algo que parecia não pertencer à terra. Enquanto Brenna se tornava uma moça curiosa e cheia de vigor, Elisabeth vivia como se escutasse outra frequência, como se o seu olhar atravessasse o tempo. Kiyra dizia que ela “ouvia o que o mundo calava”, e talvez estivesse certa. A menina por vezes falava sozinha, por vezes chorava por sonhos que não lembrava ao acordar.

Quando Elisabeth completou doze anos, Brenna decidiu partir para o mundo. Despediu-se prometendo voltar, e restaram apenas Kiyra e a filha adotiva na velha casa junto ao rio.
Mas a vida é breve até mesmo para quem ama. Pouco depois, Kiyra adoeceu, e o corpo, que por tantos anos sustentara o lar, começou a ceder. Faleceu numa manhã cinzenta, deixando a casa e as terras à jovem Elisabeth, e junto delas uma carta escrita à mão. Dizia apenas: “O amor é chama, mas nem toda chama traz calor.”

Elisabeth tinha então dezesseis anos. Ficou sozinha, recusando todos os pretendentes que vinham bater à sua porta — uns por interesse, outros por mera curiosidade.
Não buscava companhia. Sentia que seu destino não era viver como as outras, mas esperar algo que ainda não compreendia.
O silêncio, porém, é algo que os corações pequenos não suportam, e logo começaram os rumores. Diziam que ela era efémera, que falava com espíritos, que tinha pacto com forças ocultas. E como a inveja é chama disfarçada de palavra, não tardou até que o mal a alcançasse.

Numa noite sem lua, quando até as estrelas pareciam se esconder, um homem chamado Elick Ashalmeer e o seu primo Riear invadiram a casa. A ganância os movia, e o ouro da viúva era o que buscavam. Encontraram Elisabeth ajoelhada diante do altar de sua mãe, as mãos erguidas em oração. Ela tentou falar, talvez explicar, talvez apaziguar, mas Elick não quis escutar. A lâmina atravessou-lhe o peito antes que qualquer palavra pudesse nascer.

O corpo tombou em silêncio.
Enquanto o sangue se espalhava pelo chão, os dois homens saqueavam tudo o que podiam carregar — ouro, prata, especiarias, tecidos e alimentos. Depois, incendiaram a casa e fugiram sob o clarão das chamas.
Mas a fuga deles durou pouco. A carroça ainda não havia deixado a estrada quando o ar tremeu. Um som profundo, quase vivo, ecoou da direção da vila, e o fogo que devorava a casa mudou de cor. Tornou-se azul — um azul tão intenso que o céu pareceu arder junto.
Então veio a explosão.

O chão se partiu. O ar queimou.
As chamas não feriam, mas consumiam o real. As casas, os campos, os animais e até o grito dos vivos desapareceram.
Em menos de um minuto, a cidade inteira — sete mil almas — foi reduzida a cinzas.

Do meio do fogo, uma forma ergueu-se.
A pele brilhava como vidro iluminado. Os cabelos moviam-se sem vento. Os olhos, antes fechados, abriram-se como duas luas espelhadas. E das costas brotaram asas negras, vastas e silenciosas.
Sobre a cabeça, uma auréola partida girava lentamente, espalhando fragmentos de luz como pedaços de um sol morto.
A mulher caminhou entre as ruínas. Não havia ódio em seu olhar, apenas uma tristeza que pesava como o fim de um mundo.
Os poucos sobreviventes que observavam à distância juraram ouvir uma voz suave entre o crepitar das chamas:
“ Nada morre. Tudo retorna ao Fluxo. ”

A lenda nascia ali.
A mulher do fogo azul — Atemyia — tornava-se o nome sussurrado pelos que sobreviveram. Diz-se que chorou pelas vidas ceifadas e que as suas lágrimas, ao tocarem o chão, fizeram brotar as primeiras flores entre as cinzas.
Mas o preço foi alto. Elisabeth deixara de existir, e no seu lugar o mundo ganhava uma alma dividida entre o céu e o inferno.

Quando a aurora chegou, o fogo se extinguiu. O que restou foi um campo de cinza e silêncio, e no centro dele, o corpo de Atemyia. O azul das chamas já se dissipava, e a noite voltava a escurecer. Ela ajoelhou-se, tocou o solo quente e sentiu o mundo pulsar sob os dedos. Ali, o coração do Fluxo batia mais forte.

Atemyia levantou o rosto e olhou o céu que se abria. A auréola fragmentada girava lentamente, e sua luz tingia o ar de melancolia. Com voz baixa, ela disse que, se nada morria, então que ela fosse o que restasse.
Um anel de luz azul formou-se sobre ela, e o mundo pareceu parar por um instante. O Tempo, por respeito, fez silêncio.

Com o nascer do sol, a figura desapareceu.
Restaram apenas pegadas leves sobre o chão queimado e um perfume adocicado de cinza e flor.
Dias depois, viajantes contaram que a terra voltara a florescer. Onde as chamas haviam passado, brotavam lírios azuis, e deles escorria um orvalho que brilhava à luz da manhã.

Diz-se que o corpo de Atemyia foi levado pelo vento, e a alma, pelas águas do rio.
Alguns afirmam tê-la visto flutuar serenamente sobre a corrente, como se regressasse ao lugar onde tudo começou.
Na superfície, uma sombra feminina caminhava sob a água, metade anjo, metade ruína.
E quando desapareceu no fundo, o rio brilhou como prata líquida.

Naquele instante, o mundo não ganhou apenas uma lenda, mas uma semente.
Dentro da alma fragmentada de Atemyia germinava algo novo — uma forma ainda sem nome, mas que o universo já sussurrava.
Chamava-se Freya.

E assim termina o Cântico das Cinzas, a primeira história do Livro da Alma — o prelúdio da deusa que nasceria do fogo e do silêncio.