Conto II - Canto Do Mundo Sem Saida
Das sombras do velho mundo ergue-se Hugo, o homem nascido do corvo branco. Criado pelo vampiro Garai, herda a sede dos imortais e o olhar dos que já viram o fim. Entre ruínas, fé e sangue, aprende a viver entre os vivos sem pertencer a eles. Quando o seu mestre desaparece, vagueia por terras esquecidas, anotando o que resta da humanidade. É então que vislumbra, sob a luz azul do Fluxo, a figura de uma mulher que caminha sobre as águas — Atemyia, o eco do primeiro fogo, a alma que um dia será Freya. O encontro não se cumpre, mas o destino é selado: duas metades começam a mover-se uma em direção à outra, e o tempo, mais uma vez, prende a respiração.
CANTOS DE STRUMHERZ

Em um tempo remoto, quando os homens ainda confundiam o trovão com a voz dos deuses, havia um corvo branco.
Diziam que nascera de um raio, caído sobre um campo de ossos.
Outros, que era a alma de um anjo punido, condenado a caminhar entre os vivos até que o céu o perdoasse.
Ninguém sabia ao certo.
Mas o povo temia o seu olhar — olhos atentos, humanos demais para uma ave.
Voava sozinho, dormia entre pedras e observava o mundo com o silêncio de quem compreende tudo, mas nada diz.
Um dia, foi abatido por diversão.
Não morreu, apenas caiu.
Ficou preso numa gaiola de madeira num vilarejo esquecido, tratado como troféu.
Os homens vinham vê-lo, curiosos.
Alguns diziam que era sinal de boa colheita; outros, presságio de fome.
O corvo, porém, apenas olhava.
Não se debatia, não gritava.
Esperava.
Foi numa dessas noites que Garai chegou.
Um homem alto, de aparência envelhecida, mas sem marcas do tempo.
O olhar dele trazia o peso da eternidade, e o corpo, o fardo da imortalidade.
Era um vampiro erudito — um alquimista cansado da própria maldição.
Durante séculos, estudara o sangue e as almas, buscando libertar-se da sede e da noite.
Acreditava que, se fundisse uma essência pura à sua ciência profana, talvez encontrasse a redenção que os deuses lhe haviam negado.
Observou o corvo por horas.
Naquela mesma madrugada, matou toda a aldeia.
Não por raiva ou fome, mas por desprezo.
E levou consigo a ave, como quem leva um espelho.
Garai isolou-se numa torre antiga, erguida entre montanhas, onde o tempo parecia parado.
Ali, preparou o ritual.
Reuniu sangue, velas, sal e ossos de anjo queimados.
Sussurrou encantamentos em línguas que só a noite compreendia.
E, ao som de um trovão, fundiu a alma do corvo à sombra de um humano morto.
O corpo da ave gritou, o ar ardeu, e das cinzas nasceu um rapaz — nem homem, nem besta.
Foi assim que surgiu Hugo, o híbrido.
Carne moldada pelo sangue dos mortos e espírito costurado à alma do inocente.
Nos primeiros dias, não falava.
Andava em quatro patas, dormia pouco, e observava tudo com os mesmos olhos do corvo que fora.
Garai não lhe deu nome. Chamava-o apenas de “tu”.
O ensinava com gestos, não com palavras.
E o rapaz aprendia.
Imitava.
Absorvia.
Memorizava livros inteiros sem compreender o sentido, como quem recorda o idioma de um sonho.
O corpo era instável.
Às vezes, febril. Outras, frio como pedra.
Havia noites em que grasnava como ave, e dias em que ficava mudo, imóvel, como uma estátua viva.
Garai dizia que era normal.
Que sua alma ainda buscava equilíbrio entre o animal e o humano.
Mas no fundo, o velho vampiro sabia que havia criado algo que nem ele compreendia.
Com o tempo, Hugo começou a falar.
Não aprendeu com livros, mas com o som da voz do outro.
Em dois anos, falava como homem. Em cinco, pensava como sábio. Em dez, já questionava tudo.
Garai sorria em silêncio, e dizia apenas:
“Tu foste feito para caminhar onde nem eu ousaria ir.”
O mundo ao redor mudava.
A era dos caçadores de vampiros havia passado, mas as cicatrizes permaneciam.
A noite já não pertencia às criaturas antigas; agora pertencia ao medo.
E Hugo caminhava entre o medo e a dúvida, aprendendo a ouvir o que o mundo calava.
Não envelhecia como os homens, nem vivia como os imortais.
Carregava uma sede que nunca era completa, e uma culpa que não lhe pertencia.
Os animais o seguiam, as crianças o temiam, e as mulheres viam nele algo que não sabiam nomear.
Era um espelho quebrado — metade besta, metade revelação.
Certa noite, Garai desapareceu.
Sem ruído, sem rastro, sem despedida.
A torre amanheceu vazia.
Hugo buscou-o por meses, sem sucesso.
Encontrou apenas a mesa do laboratório coberta de cinzas e uma frase gravada no mármore:
“Tu foste feito para caminhar onde nem eu ousaria ir.”
Foi nesse silêncio que o rapaz se tornou homem.
Aprendeu a sobreviver sem mestre, a esconder a própria natureza, a andar entre os vivos.
Nas vilas e nas estradas, chamavam-no de andarilho, de estrangeiro, de maldito.
Mas nenhum desses nomes o ofendia.
O nome verdadeiro, aquele que o mundo ainda não sabia, seria o último eco do corvo branco.
Vivia de cidade em cidade, entre monges e mercadores, entre o pecado e a fé.
Observava o homem, e quanto mais via, menos o compreendia.
Havia neles a mesma fome que destruíra Garai, a mesma sede disfarçada de bondade.
Hugo aprendeu a não julgar.
Somente via — e registrava o que via.
Carregava diários consigo, anotando o que chamava de “lembranças de um tempo que não me pertence”.
Às vezes, sentava-se sob as estrelas e sentia o mundo mover-se em silêncio.
Nesses instantes, via rostos nas nuvens, vozes no vento, e um fogo distante que tremulava entre sonho e lembrança.
Em uma dessas noites, viu uma mulher envolta em luz azul, caminhando sobre as águas.
Os olhos dela, tristes, pareciam conhecê-lo.
Ela olhou em sua direção e murmurou, sem som:
“Nada morre. Tudo retorna ao Fluxo.”
Hugo não sabia se era visão, memória ou aviso.
Mas entendeu que aquela presença — seja divina, seja lembrança — fazia parte do mesmo destino que começava a se mover dentro dele.
O corvo branco, enfim, aprendera a sonhar.
E o homem, nascido da noite, começava a pressentir a aurora.

