PARTE I – NASCIMENTO DE ATEMYIA
Capítulo I - A Criança que o Céu Esqueceu
Era uma vez um pequeno anjo curioso que desceu à terra encantado pelo mundo mortal. Esse anjo albino, de olhos vítreos como cristais antigos, tomou a forma de uma bela moça e andou entre os homens. Queria entender os sabores, os toques, os medos e os desejos que só os mortais conheciam.
Mas a terra é dura com os puros.
Foi capturada, vendida como escrava e marcada pelo pecado dos homens. Quando tentou fugir, foi punida com açoites e humilhação. Seu nome era Olivia — uma anja que desceu à Terra por curiosidade e acabou enredada pelos prazeres e violências do mundo mortal. Ao tentar regressar à terra sagrada, foi expulsa do céu e caiu no submundo. Lá, conheceu Hades, um demônio errante de baixa casta. Ambos, corrompidos e exilados, viram um no outro algo sagrado. Amaram-se. E dessa união, mortal a Olívia, nasceu uma criança: fruto da fusão entre o celestial e o infernal
Essa criança despertou pânico no conselho dos deuses. Deus — o verdadeiro, aquele que representa o equilíbrio absoluto — aceitou sua existência. Mas os outros deuses não. Temiam o que ela poderia se tornar. Assim começou a guerra: de um lado, Deus e as bestas sagradas; do outro, o Conselho unido ao submundo, conspirando em segredo. No auge do conflito, Deus foi traído por um de seus próprios anjos subalternos, que ambicionava o trono celestial. O Criador caiu, e seu corpo dissolveu-se no fluxo divino. Após a queda, Freya e Kuk — exilados por se oporem ao Conselho — uniram-se a Hades, e juntos selaram os poderes da criança numa alma humana. Enviaram-na ao mundo mortal, onde renasceria como mortal. Hades, por sua rebeldia, foi condenado a tornar-se uma besta infernal, aprisionado no mais baixo nível do submundo.
No mundo dos homens, a criança foi adotada por uma mãe e filha judias — Kira e Brenna — nos arredores de Gaza. Chamaram-na de Elisabeth Bayer.
Elisabeth cresceu entre sombras e promessas. Brenna, sua irmã adotiva, fugiu. Kira caiu na melancolia e, anos depois, morreu de uma doença terminal nos braços da filha. Restou apenas Elisabeth, frágil, pálida, silenciosa.
Os anos passaram. Conflitos estouraram em Jerusalém. Cruzadas, invasões, e a busca por santidade feita com aço e sangue. Elisabeth, agora adolescente, foi capturada. Acusada de bruxaria por ser albina, foi levada à antiga Roma, onde os fanáticos julgam o que não entendem.
Na praça pública, uma multidão se amontoava em volta da estaca de madeira. Ao lado de Elisabeth, acorrentada e exausta, havia uma criança albina, de talvez oito anos, também acusada de feitiçaria.
A multidão rugia.
Elisabeth ergueu os olhos. Sujos de lágrimas e fuligem, mas ainda cheios de força.
E falou:
— Não vos envergonhais?
— Uma criança... uma simples criança, é isso que temem? Porque sua pele não conhece o sol? Porque seus olhos são claros como os céus que vós profanastes com vossas guerras? Isso basta para chamá-la de bruxa?
— Que fé é essa que treme diante de uma menina? Que justiça é essa que se alimenta do choro dos pequenos? O mal não está nela. Está em vós.
— Vós, que dizeis falar por Deus, mas vos embriagais no prazer de queimar. Vós, que não suportais o que é puro, porque vos lembra de tudo que corromperam.
— Se querem queimar algo, queimem-me. Crucificai-me, se é isso que vos acalma. Mas deixai essa criança em paz. Pois se um só fio de cabelo dela for consumido pelas vossas chamas, sabereis: não foi uma bruxa que mataram... foi a vossa própria alma.
O juiz, um homem seco e cruel, vestia negro dos pés à cabeça. Seu rosto crispou-se de raiva. Avançou dois passos, rugiu para os soldados:
— BASTA! Que se queime a serpente junto da cria! Que ambas ardam para calar a mentira!
A multidão gritou em aprovação. O céu, cinzento, permaneceu calado.
Os archotes foram lançados.
Elisabeth olhou a menina ao lado, que chorava em silêncio. Tocou-lhe a mão com delicadeza, mesmo acorrentada. Sorriu, e num último sopro, murmurou:
— Não tenhas medo... o céu ainda te deve um amanhecer.
No meio das chamas, a multidão rugia mais — mas no silêncio do fogo, algo mudou.
Elisabeth sucumbia. Seus pulmões já não suportavam o calor. Sua carne ardia. Sua visão escurecia. Mas no limiar da morte... algo se abriu.
E então ela viu.
Diante de si, como num espelho enterrado no chão, o céu refletia uma paisagem invertida, feita de névoa, memória e luz. Um vulto surgia em meio às águas paradas. Uma figura de voz suave e presença imensa.
— Elisabeth... seja bem-vinda.
— Mas não temas. Tu não és só carne. És algo mais. Filha de Freya e de Kuk. Filha de Hades e de Olívia.
Somos os que não têm nome, os que caminham na destruição e trazem também a salvação.
Elisabeth não entendeu. Queria gritar, mas não podia. Queria fugir, mas o corpo era cinza e carvão.
E então, quando o vulto a tocou, ela despertou.
Seu corpo em chamas tremeu. Mas por dentro, sua consciência queimava mais forte que o fogo físico. A multidão gritava. Raios começaram a rasgar o céu. As labaredas, antes carmesim, tornaram-se azuis como o abismo.
E então, do centro da estaca, emergiu uma figura demoníaca e divina, de asas negras abertas como véus de julgamento, olhos azul-acinzentados como o mar da criação, e dois chifres cravados como coroa profana.
O povo caiu de joelhos. Uns por medo. Outros por desespero.
E ela falou, com a voz da terra e do submundo:
— Avós que condenais inocentes... que a alma de vós arda no enxofre.
Eu vos declaro culpados do maior pecado: matar o que não compreendeis.
Estalou os dedos.
Quinhentas cabeças explodiram em silêncio.
Sobraram poucos.
O juiz — o mesmo que a havia condenado — caiu de joelhos, chorando, implorando.
Mas ela, fria como pedra antiga, encarou-o e disse:
— Avós, deixo-te a pior sentença: viver sabendo que os mortos pesam no teu nome.
Que saibas que eles arderam por tua palavra.
E que o nome Freya Kuk nunca mais desapareça das vossas cabeças.
E assim, ela caminhou entre os corpos calcinados, deixando pegadas de sombra.
O juiz, tomado por pânico e terror, morreu ali mesmo, de ataque cardíaco.
Elisabeth não olhou para trás.
Agora, ela era deusa.
Agora, ela era terra.
Agora, ela era julgamento.
- Não era mais Elisabeth... Era o próprio eco da terra a exigir memória, e o mundo, desde então, jamais voltou a dormir em paz. -
Capítulo II - O Silêncio das Areias
As cinzas de Roma ainda flutuavam quando o vento mudou. Ninguém soube explicar como, mas o corpo daquela jovem — queimado em praça pública sob acusação de bruxaria — desapareceu da pira. O povo recuava diante do horror que não compreendia, e os mais velhos diziam ter visto os olhos dela brilharem antes que o fogo a consumisse. Houve quem jurasse ter sentido uma presença antiga, algo que vinha de antes do tempo dos homens, como se os céus e os infernos tivessem parado para escutar o nome gritado em agonia: Freya Kuk.
Nos dias seguintes, o Vaticano negou. A cidade foi fechada. Mas o silêncio, esse, espalhou-se como maldição. No Mediterrâneo, um barco sem bandeira cruzava as águas em direção ao Egito. A embarcação parecia abandonada, exceto por um velho remador de olhos costurados e uma tenda no centro da proa, onde dormia, envolta em véus de linho negro, uma figura sem nome. Não era carne. Não era sombra. Era algo entre o fim e o início.
Quando abriu os olhos, já era noite sobre o Saara. A areia, ainda morna, colava-se à sua pele. O céu estrelado piscava devagar, como se temesse perturbar o que despertava. Estava numa tenda protegida por inscrições brilhantes, rodeada por silêncio sagrado. Diante dela, sentada com as pernas cruzadas, uma mulher de pele escura e olhos brancos como leite fitava o vazio. Cega, mas de alguma forma mais desperta que qualquer outro ser vivo.
— Tu acordaste — disse ela sem mover os lábios. — Kuk preparou o caminho. Tu só precisavas lembrar de como caminhar.
Freya sentou-se, atordoada. Sentia-se partida. O corpo lembrava o calor das chamas, mas a alma sussurrava canções que não conhecia. Havia um nome em sua garganta — Atemyia — mas não sabia por quê. Meritra, a mulher cega, não lhe exigiu nada. Apenas se levantou, tocou-lhe a mão e começou a andar. Freya a seguiu. Sem armas. Sem certezas. Apenas com a sensação de que havia voltado a um lugar onde nunca estivera.
Durante dias, atravessaram o deserto. Não o deserto dos mapas, mas aquele escondido entre véus, onde as pirâmides verdadeiras jaziam soterradas, longe do olhar humano. Meritra não precisava enxergar. Ela caminhava com a certeza de quem escuta o chão falar. Levou Freya por ruínas invisíveis, passagens esquecidas, túneis protegidos por encantamentos antigos, onde os deuses ainda cochichavam pelas paredes. As colunas respiravam. Os hieróglifos moviam-se. Era como se o tempo estivesse vivo, como se tudo ali apenas aguardasse a presença dela para reanimar-se.
No interior de uma pirâmide afundada pela areia, chegaram a uma sala circular. No centro, levitando em silêncio absoluto, flutuava uma esfera negra envolta por anéis dourados — cada anel girando em velocidade distinta, como planetas orbitando um sol esquecido. O artefacto pulsava. E, ao aproximar-se, Freya sentiu-o chamá-la. Não com voz, mas com lembrança.
Ao tocá-lo, tudo ao seu redor dissolveu-se.
Viu a guerra. Viu os céus em fúria, as asas dos anjos rasgadas pelos ventos dos titãs. Viu os deuses marchando em desespero. Viu a traição de Zeus, a fuga de Kuk, o sacrifício de Olivia. Viu cidades feitas de cristal sendo devoradas por serpentes de luz. E viu Hades... Hades com os olhos molhados, correndo entre as ruínas, segurando nos braços uma pequena criança enrolada em panos pretos.
Ela não chorava. Apenas olhava, quieta, os horrores à sua volta. Os deuses gritavam, caíam, morriam. E mesmo assim, o demônio protegia aquele corpo frágil como se fosse tudo o que restava. Kuk surgia à sua frente. Tocava-lhe a cabeça com dois dedos, deixando um selo que brilhava em azul escuro.
— Protejam-na — dizia ele. — Nela está o ponto de equilíbrio. Se ela cair para um lado, o mundo ruirá no outro.
Freya soltou o artefacto. Caiu de joelhos. O peito arfava. As mãos tremiam. Havia algo naquela criança... algo tão íntimo que doía. Mas ela não sabia por quê. Ainda não. Apenas chorou, sem entender. Chorou como quem enterra uma lembrança viva. Meritra ajoelhou-se ao seu lado.
— Essa criança és tu — disse com ternura. — Mas teu espírito ainda não está pronto para aceitar.
Freya quis negar. Mas sentia. No fundo de si, sentia.
Ao sair do templo, o ar estava diferente. As estrelas estavam mudas. E sobre as dunas, vultos observavam. Homens encapuzados, figuras sem rosto, segurando artefactos que brilhavam com luz artificial. Eles não se aproximaram. Apenas olharam. Depois desapareceram como se nunca tivessem existido.
Meritra tocou-lhe o braço com leveza.
— A Ordem desperta. Não tem nome. Não tem rosto. Mas segue teu cheiro. Serás perseguida. Serás usada. Serás temida. Mas também serás lembrada. Mesmo quando o teu nome for esquecido.
Freya respirou fundo. Kuk deixara seu recado. A terra chamara. E agora, ela compreendia: sua existência não era um erro, mas um selo. Um divisor. Uma fronteira entre a criação e o fim...
E assim saíram daquele templo velho e procuraram um local para descansar. Na encosta de um pequeno oásis ressequido, encontraram um acampamento simples, montado com tendas de tecido puído, lamparinas a óleo e uma fogueira recém-apagada. Havia três viajantes: um homem velho de fala lenta, uma moça silenciosa e uma criança adormecida, com os pés sujos de poeira. Receberam Freya e Meritra com uma mistura de respeito e curiosidade. Não fizeram perguntas. O deserto ensinava que perguntas podiam ser fatais.
À noite, o céu se fechou.
Das sombras entre as dunas, surgiram homens magros, rostos fundos, olhos escuros demais, dentes escondidos sob sorrisos tensos. Caminhavam como quem deslizava. Vestiam-se como comerciantes comuns, mas algo neles cheirava a sangue velho e solo seco. Não pediram. Apenas invadiram.
Freya reagiu instintivamente. O fogo surgiu na palma das mãos sem que ela o desejasse. As sombras se torceram. Ela avançou entre as tendas como uma lança viva, protegendo a criança, tentando conter o caos. Mas os inimigos não eram comuns. Moviam-se rápido demais, quase como vultos. Tocavam e sugavam o calor. Mordiam e deixavam marcas que não sangravam, mas doíam por dentro.
E então, algo em Freya se partiu.
As asas se abriram. O negro delas tornou-se rubro nas pontas, como se o fogo interior tivesse começado a devorar a sombra. As chamas não obedeceram. As sombras não a ouviram. E o tempo, por um momento, desapareceu.
Quando voltou a si, o acampamento inteiro estava em ruínas. As tendas queimadas. Os corpos espalhados, indistintos entre inimigos e inocentes. A criança jazia com os olhos abertos, e Meritra estava distante, sentada numa rocha, com a cabeça baixa.
Freya caiu de joelhos.
Meritra falou sem levantar-se:
— Lutaste por eles. Mas não és só força. És equilíbrio. E o caos começa a perceber que também vive em ti. Kuk deu-te a escolha. Mas nunca disse que seria fácil segurá-la.
Ao amanhecer, Meritra não estava mais ali.
Freya procurou, gritou, caminhou pelas dunas — mas não encontrou ninguém. Apenas o colar da cega entre as areias. Enterrou-o. Vestiu as roupas sagradas que encontrara. E, olhando-se refletida na água de uma bacia partida, viu-se pela primeira vez como Freya Egípcia.
Começou a andar.
Mas o deserto não estava quieto. Cidades ardentes, torres despertas, soldados e sacerdotes gritavam seu nome. Freya Kuk! O Julgamento chegou! Estavam a usá-la. Deturpavam sua imagem. Profanavam os símbolos sagrados em seu nome.
Ela não podia permitir.
O Egito já não era seu refúgio — era agora uma armadilha de poder.
E por isso, virou-se para leste, rumo às Índias.
Talvez lá, onde os deuses antigos ainda cochichavam entre templos e rios, onde as estrelas se curvavam diante de mantras esquecidos, ela pudesse entender-se antes que fosse tarde demais.
Capítulo III - Tremor de especiarias
A areia do Egito ficou para trás, mas o fogo nela ainda ardia.
Freya atravessou oceanos em silêncio, escondida entre tecidos, especiarias e sombras, numa embarcação que cruzava o Mar Vermelho rumo ao Oriente. Dormia com os olhos abertos e o peito fechado. A cada batida do coração, sentia a marca do desequilíbrio pulsando sob a pele — a herança deixada pelo fogo, pelos mortos, pela corrupção que começava a florescer em suas asas.
Quando enfim tocou o solo das Índias, o ar pareceu diferente. Mais leve. Mais denso. Mais vivo. O tempo ali não se contava em dias, mas em mantras. O vento carregava o nome dos deuses, e as árvores pareciam ter mais memória do que as cidades de pedra. Era um mundo onde tudo coexistia — fome e fé, morte e renascimento, lama e flor.
Caminhou por dias, até chegar à cidade que os homens chamavam de Varanasi — a mais antiga entre as vivas. Lá, o rio Ganges corria como uma artéria sagrada, e os templos brotavam das margens como cicatrizes douradas. Não havia guerra ali, mas também não havia paz. Havia um silêncio devoto, um respirar ancestral que fazia Freya desacelerar pela primeira vez.
Foi então que o encontrou.
Sentado sob uma figueira, de costas para o mundo, Sidarta Gautama, o Buda, falava para um pequeno grupo de discípulos. Seus olhos fechados pareciam ver mais do que os abertos. E sua voz — calma como o início de tudo — dizia não o que era certo, mas o que era necessário.
Freya ficou à distância, oculta entre véus. Ouvia sem perguntar. Observava sem ser notada. E ali, entre palavras sobre o fim do sofrimento e o caminho do meio, ela sentiu algo dentro dela acalmar. Pela primeira vez desde que despertara no mundo, as vozes cessaram. O sangue deixou de queimar. A sombra recuou.
Durante três dias, ela permaneceu entre eles. Em silêncio. Tocou a terra. Respirou fundo. Jejuou. E aprendeu, ainda que não com palavras, que o caos também pode dormir — se for acolhido, não negado.
No quarto dia, ao amanhecer, Buda passou por ela e, sem olhar, disse apenas:
— Aquilo que te devora também te equilibra. O fogo, se guiado, não destrói — ilumina.
E então seguiu.
Freya não disse nada. Mas ao levantar-se, sentiu que as asas estavam mais leves.
No mercado de seda à beira do rio, aceitou roupas de um artesão mudo. Um manto amarelo e lilás, adornado com pedras de quartzo e ouro. Um véu longo que descia pelas costas. Brincos em forma de espiral. Uma joia em sua testa — o símbolo da percepção, cravejada entre os olhos. Assim nasceu a Freya das Índias.
Vestida de luz e calma, ela caminhou pelas ruas de Varanasi. Já não era uma forasteira. Era parte da paisagem, parte do mistério.
E foi ali, no coração dessa cidade milenar, que o destino novamente a encontrou — na forma de um ladrão desajeitado chamado Aladim
Não era o da lenda. Era um rapaz de olhos famintos e sorriso torto, que roubava para viver e vivia para sonhar. Tentou enganá-la — tropeçou sobre si mesmo ao tentar cortar-lhe a bolsa. Ela não se moveu. Não o puniu. Apenas sorriu.
— Queres algo, mas ainda não sabes o quê.
Ele ficou em silêncio. Nenhuma lâmina era mais afiada que aquela voz.
Nos dias que se seguiram, Aladim a seguiu como se soubesse que ela era a chave de algo maior. Contou-lhe sobre o mito de um tesouro perdido, escondido sob um templo afundado nos arredores de Varanasi, selado por magos antigos. Um génio deveria protegê-lo. Mas ninguém jamais voltou de lá.
Freya, num impulso que nem ela compreendeu, ofereceu-se para ajudá-lo. E ele, crente de estar a viver a lenda, levou-a até o local.
O templo era real.
Mas não havia génio.
Havia apenas ecos.
E a memória do fluxo.
Quando tocaram a câmara proibida, uma energia negra se libertou. O selo que protegia o tesouro era, na verdade, uma prisão de fragmentos divinos, selados por entidades hindus. A presença de Freya ativou aquilo — e os fragmentos tentaram fundir-se a ela, reconhecendo seu sangue como o sangue da ruína.
Ela resistiu. Mas a cidade sentiu.
Trovões cortaram o céu seco. Estátuas racharam. Sacerdotes correram aos altares. Diziam que uma bruxa havia profanado o ventre da terra. Diziam que a morte caminhava com véu dourado.
Aladim tentou protegê-la. Tentou defender sua deusa. Mas foi ferido. Não por espadas — mas por promessas quebradas. O templo desabou. E quando Freya o puxou pelos escombros, era tarde.
Morreu sorrindo.
Disse que ela era mais que um génio.
Disse que desejava só tê-la encontrado antes.
E morreu.
Freya gritou.
O Ganges tremeu.
Mas o mundo não perdoa milagres fora de hora.
No dia seguinte, foi capturada por homens trajando armaduras sem brasão — enviados de Roma, que já a caçavam desde o Egito. A Ordem ainda não tinha nome, mas os seus olhos estavam em toda parte.
E assim, Freya foi levada em silêncio.
Não como deusa.
Mas como prisioneira.
Para o lugar onde a queimaram.
Para o lugar onde juraram esquecê-la.
Para o Vaticano.
Capítulo IV - A Santa em Silêncio
Diziam que ela chegou ao Vaticano envolta em correntes, mas quem a viu lembra-se de outra imagem: uma moça de olhos distantes, vestida de véu dourado e túnica pálida, com as mãos entrelaçadas como quem rezava — e asas recolhidas que tremiam, não de medo, mas de contenção.
Foi recebida em silêncio, levada por corredores escondidos que nunca constavam em mapas. Lá, no coração da cidade sagrada, existia um subsolo de pedra negra, anterior à própria fé católica, onde monges esquecidos, inquisidores secretos e padres de olhos vazios reuniam-se à meia-luz.
Ela não foi trancada.
Não havia grades. Nem gritos.
Havia apenas rituais.
Todas as manhãs, ela era levada a uma sala oval, envolta por espelhos antigos e símbolos hebraicos riscados com ouro. Lá, recitavam sobre ela orações invertidas, invocações deformadas — não para expulsar demônios, mas para expulsar o anjo.
Era um exorcismo reverso.
Queriam purificá-la da luz. Rasgar-lhe a origem divina.
Fazer dela um vaso vazio, pronto para ser preenchido com o dogma que restasse.
A cada dia, ela sentia menos o mundo.
As sombras recusavam-se a tocar-lhe.
As chamas se apagavam nas mãos.
O tempo — antes seu aliado — deixava de dobrar-se.
Mas o que eles não sabiam era que Freya aprendeu a fingir.
Andava pelos corredores escondida sob mantos cerimoniais, como uma nova santa. Era saudada com reverência por alguns, e com temor por outros. Nenhum deles sabia que, por trás da auréola de falsa paz, vivia um abismo prestes a acordar.
Foi nesse tempo que suas vestes mudaram.
As túnicas brancas e lilás da Índia foram substituídas por trajes de ouro, prata e cetim pesado. Um colar simbólico adornava seu peito, como se ainda fosse serva do céu. As asas, agora pintadas de preto e vermelho, só surgiam quando ninguém via. Mas estavam lá. Ardendo. Corroídas pelas tentativas de apagamento.
Freya caminhava como estátua viva.
Mas por dentro, o caos crescia.
Durante semanas, forçaram-na a reviver seus maiores traumas. Os gritos de Roma. O templo nas Índias. O sangue no deserto. As vozes que clamavam seu nome pelas torres. Chamavam aquilo de purificação. Ela sabia que era aniquilação lenta.
Um dia, diante de um monge mais jovem, deixaram-na sozinha por tempo demais.
Ele ajoelhou-se à sua frente. Tocou seu pé como se tocasse uma relíquia.
— A ti chamam de santa. Mas eu sei. Tu és algo além.
— Tu és a resposta que o mundo não quer ouvir.
E então ele a soltou.
Com apenas três palavras sussurradas — uma oração esquecida em sumério —, ele quebrou o selo do chão.
A terra tremeu.
As correntes que a selavam desapareceram.
As asas abriram-se com um estrondo surdo, como um trovão abafado por pedra.
Ela não matou ninguém. Não precisou.
Apenas desapareceu entre os vitrais, os corredores e as mentiras.
Ao cair da noite, o Vaticano ficou vazio de uma coisa que nunca soube manter: o equilíbrio entre o divino e o humano.
E ao longe, já entre florestas e vales gelados, rumando para a Eslávia medieval, Freya caminhava com o frio no rosto e um novo silêncio no coração.
Não era fuga.
Era retorno.
Não ia em busca de paz — ia em busca de si.
Capítulo V - A Última Brancura da Eslávia
O mundo já sussurrava o nome dela como um presságio.
Freya Kuk. A maldição com asas. A blasfêmia vestida de mulher. A filha do inferno disfarçada de santa. Desde Roma até as Índias, seus rastros deixavam vilas destruídas, profetas enlouquecidos e santuários rachados. Mas agora, a perseguição tinha um nome oficial. A Inquisição nascera. Em cartas seladas, em corredores ocultos, nos becos onde padres oravam de olhos abertos, o objetivo estava claro: encontrar, selar, ou destruir a anomalia conhecida como Freya Kuk.
Ela, no entanto, já não se chamava assim.
Após fugir do Vaticano, atravessou montanhas nevadas até chegar à Eslávia — terra de invernos eternos, rezas ancestrais e gente que já perdera a fé antes mesmo de tê-la. Ali, o mundo parecia mais velho. As palavras eram curtas, e os olhos desconfiados. Freya escondia-se sob mantos cinzentos, a pele pálida manchada de fuligem, as asas recolhidas num vazio entre o ombro e o tempo.
Durante dias caminhou sozinha, até que caiu. Fraca. Febril. Entre as árvores de uma floresta esquecida.
Foi ali que ele a encontrou.
Mizuki Alvazul.
Jovem demais para parecer tão atento. Roupas de alguém que sabia o valor do frio. Cabelos presos com fita. Um colete verde desgastado, e olhos castanhos claros que estranhamente não a temeram.
— Estás bem? — perguntou ele, agachando-se.
Ela não respondeu.
Ele entregou-lhe um manto mais espesso, de lã e tecido grosso.
— Não tenho muitas perguntas — disse, erguendo-se. — Mas posso levar-te a um lugar seguro. Se quiseres.
Ela assentiu com os olhos.
E assim começou.
A cabana era de pedra. Uma lareira pequena no centro, livros empilhados onde deveria haver comida, e janelas sempre fechadas por precaução. Mizuki cuidava dela em silêncio, com chá de raízes e palavras contadas. Não exigia explicações. Lia para si mesmo. Ria sozinho. Falava com o vento.
Na terceira noite, durante um jantar de pão duro e queijo mofo, ele tentou saber quem era.
— Tens nome?
Ela hesitou.
A primeira vez que falou com ele foi apenas um sussurro.
— Elisabeth.
— Nome bonito. Combina contigo.
Foi o único que a chamou assim.
Para todos os outros — guardas, camponeses, inquisidores — ela continuava a ser Freya Kuk. A aberração. A deusa corrompida. A besta.
Mas Mizuki... ele só conhecia Elisabeth.
Sem saber, ele já estava envolvido demais.
Mizuki era filho rejeitado de uma casa nobre. Acusado de impureza espiritual por carregar um dom antigo — ouvir o mundo antes que ele falasse. Foi expulso da família, traído pelo sangue, amaldiçoado pela profecia de uma cigana que dissera que ele morreria muitas vezes... e viveria sempre incompleto.
Ele achava que era loucura. Até conhecer Elisabeth.
Ela não ria. Mas escutava.
E no silêncio entre os dois, cresceu um fio invisível.
Mas o mundo não permite fios soltos por muito tempo.
Na décima terceira noite, ela acordou com o céu tremendo.
Tochas. Cães. Marchas.
A Inquisição.
Eles haviam seguido seus rastros desde o Vaticano. O mapa que carregavam indicava o vale eslavo com um símbolo negro: uma estrela partida com o nome FREYA KUK marcado com sangue.
Mizuki tentou protegê-la.
Disse que fugiriam pelos túneis.
Mas ela já sabia que não havia fuga.
A porta explodiu em madeira. Inquisidores entraram com lanças, orações invertidas e medalhões acesos.
Ela tentou conter-se. Mas o coração cedeu.
As asas abriram-se num rasgo de ar flamejante.
Os olhos dela arderam em vermelho.
Os inquisidores recitaram os versículos da Queda, tentando quebrar-lhe a essência.
E então, Mizuki correu.
Tentou impedir. Tentou defender.
Mas uma lança atravessou-lhe o peito.
Ela gritou.
O tempo congelou.
— Não! — caiu de joelhos ao lado dele. As mãos dela tremiam.
— Não te posso... perder.
Mizuki tossiu sangue. Os olhos ainda buscavam os dela, confusos, quase calmos.
E foi então que ela cometeu o pecado maior.
Selou-o.
Partilhou um fragmento de sua alma e o prendeu dentro dele.
Fez com que seu corpo não morresse.
Mas toda vez que morresse, perderia a memória.
Para sempre.
— Tu viverás... enquanto eu viver — sussurrou. — Mas nunca te lembrarás de mim.
E assim selou a maldição da meia-alma.
Uma vida sem fim.
Mas sem lembranças.
Sem raízes.
Uma existência onde o amor é sempre esquecido.
Os inquisidores fugiram ou arderam.
Ela partiu ao amanhecer.
Deixou Mizuki dormindo sob neve e dor.
E, pela primeira vez, chorou sem som.
Não por medo.
Mas porque soube que jamais seria chamada de Elisabeth de novo.
Capítulo VI - O Sangue, o Sol e a Estrela Velada
Ela caminhava entre ruínas, mas o chão ainda ardia dos gritos.
A Península tremia com guerras de homens, mas poucos sabiam que por trás das bandeiras, cruzes e lâminas havia algo mais antigo movendo os fios. Um sussurro que viajava com o vento seco, e que os monges chamavam de heresia, os soldados de maldição, e os pastores apenas de medo. Esse sussurro tinha asas rubras e olhos que já tinham chorado a destruição de reinos.
Naquela terra de cruzadas internas e reinos divididos, Freya andava sozinha.
Agora vestia roupas simples, misturadas entre camponesa e nobre. Um vestido azul e castanho de lã pesada, adornado com um cinto de couro amarrado com fita desfiada. As asas permaneciam ocultas, mas seu olhar dizia o que o corpo silenciava: ela não era deste tempo — mas estava presa a ele.
Cruzou montes e fortalezas arruinadas, vilarejos flamígeros e planícies devoradas por estandartes. Ouviu falar de uma guerra iminente ao norte, onde um jovem nobre se revoltava contra a própria mãe — e que o povo já chamava, baixinho, de Afonso.
A verdade, que poucos sabiam, é que essa guerra já estava decidida antes mesmo de ser sonhada.
Na noite anterior à Batalha de São Mamede, quando as tropas do jovem Portucalense tremiam em número e fé, Freya caminhou entre eles. Não como deusa. Mas como uma enfermeira muda. Suas mãos curavam sem chamar atenção. Seus olhos traziam sono a quem já não conseguia fechar os próprios.
E naquela madrugada, antes das espadas cruzarem, ela tocou o chão com a palma da mão.
Uma pequena onda negra, imperceptível, espalhou-se sob a terra — como quem retira da sorte o direito de decidir.
Afonso venceu.
Disseram que foi estratégia.
Outros que foi milagre.
Mas entre os que ali sangraram, três soldados olharam para trás e juraram que viram, entre as sombras, uma mulher com auréola quebrada e asas de brasa recolhidas nos ombros.
A notícia espalhou-se rápido demais.
Freya Kuk estava ali.
A besta, a santa, a destruidora.
E então, ela partiu.
Antes que Afonso a visse.
Antes que o povo ousasse chamá-la de salvadora.
Antes que os olhos da Inquisição — que a seguiam desde a Eslávia — a alcançassem.
Seguiu para o sul.
Para Leão.
Lá onde a fronteira queimava.
Onde a Reconquista cavava trincheiras e a fé servia de armadura para a morte.
Em aldeias destruídas, Freya encontrou os esquecidos: mulheres partidas, crianças mutiladas, homens que já não lembravam por que lutavam. Ela ficou entre eles, tratou-lhes as feridas, carregou os mortos para longe das casas, cozinhou o pouco que havia e ouviu, em silêncio, os sonhos de um mundo sem guerra.
Mas mesmo ali, em trapos e silêncio, a auréola brilhava nas noites em que dormia.
Ela não podia esconder o que era por muito tempo.
A sombra da Inquisição estava a dias de distância.
E o nome Freya Kuk voltava a ser escrito em sangue,
desta vez... em pergaminhos da própria coroa...
Capítulo VII - As Cinzas do Norte
O mar não perdoa fugitivos, mas esconde-os bem.
Freya partiu ao cair da noite, sem luz, sem nome, sem pátria. A última chama das aldeias de Leão ainda ardia às suas costas quando subiu num barco de contrabandistas em direção ao norte. As velas estavam rasgadas, os homens falavam pouco. Levavam sal, armas e medo nos bolsos. Ela apenas se sentou no convés, envolta em mantos molhados, com os olhos fixos no horizonte — e a alma presa entre batidas que não soavam mais como humanas.
A travessia durou semanas.
As águas agitadas cuspiram a embarcação nas costas frias da Escócia ocidental, próximo aos domínios esquecidos dos clãs das ilhas Hébridas. Era o ano de 1070. Quatro anos após a queda do rei Harald na Batalha de Stamford Bridge, e a derrota final dos vikings em solo inglês. O mundo já se esquecia dos deuses do Norte. Mas nem todos se renderam.
Naquela praia, um clã viking remanescente capturou os sobreviventes do barco. Não eram invasores como outrora — eram refugiados culturais, mantinham rituais antigos, navegavam entre ilhas em busca de algo que já não sabiam nomear.
Ao verem Freya ser arrastada para terra firme, coberta de véus queimados, asas abertas e olhos vermelhos pelo sal e febre, eles ajoelharam-se.
— Valkyrja — disse o mais velho, tocando a areia com a testa.
— A última de Asgard, caída entre os homens.
Ela tentou negar, mas não tinha forças. O corpo tremia. As veias queimavam. A auréola brilhava em faíscas intermitentes. O sangue pingava das mãos mesmo sem feridas.
O colapso havia começado.
Acolheram-na como deusa, mas tratavam-na como se fosse um mero símbolo.
Deram-lhe roupas quentes de pele e linho — o vestido cinza e branco, preso com cordões coloridos entrelaçados com contas de vidro, símbolo da terra e da morte. As crianças cantavam canções para ela. Os anciãos recitavam Eddas antigas em volta da fogueira.
Freya ouvia tudo em silêncio.
Mas por dentro... a alma estalava.
À noite, vomitava...
Ao acordar, não sentia os pés.
As asas ganhavam manchas cinzentas.
O halo partia-se em linhas invisíveis.
E por dentro, um vazio frio crescia onde antes havia chama.
Ela começou a ver ecos.
Fragmentos de memória que não lhe pertenciam.
Viu-se lutando ao lado de guerreiros que nunca conheceu.
Viu Odin morrer.
Viu a queda de Bifrost como se estivesse lá.
Viu a face da morte em tantas línguas que já não conseguia reconhecer a própria.
E então, na noite em que as luas alinharam-se, um velho völva — xamã do clã — disse-lhe que os deuses nórdicos não estavam mortos... apenas esquecidos. E que ela era a ponte entre o fim do mundo antigo e o nascimento de um novo.
— Mas tu estás a rachar — disse o völva, olhando-lhe o rosto. — A tua alma foi costurada demais. As linhas estão a desfazer-se.
— Então corta-me — sussurrou ela. — Antes que me rasgue por completo.
Mas o velho apenas sorriu.
— Só tu poderás decidir de que lado cairás... quando fores dividida por inteiro.
Naquela noite, um grupo de normandos desembarcou numa vila próxima. Diziam vir com ordens da coroa inglesa, mas usavam o símbolo da cruz dupla — era a Inquisição, disfarçada de diplomacia.
Procuravam por algo. Ou alguém.
Freya soube.
E então, antes que a vila fosse queimada... ela partiu.
Deixou para trás os que a reverenciaram, os que a temeram, e os que tentaram amá-la como se ela fosse mais mito do que carne, deixou os fiordes antes do sol nascer. Não seguiu para o norte, como os caçadores previram, mas virou-se para o sul, atravessando vales e ventos até alcançar a França. Seu corpo ainda tremia. A alma rangia como madeira velha. Mas seus olhos — mesmo manchados de vermelho — ainda buscavam sentido.
Na costa atlântica, encontrou marinheiros portugueses preparando embarcações. Não perguntou o destino. Apenas embarcou, deixando para trás os velhos deuses do gelo. O mar de novo. O silêncio de novo. Mas desta vez, ela sentia... que algo a esperava do outro lado.
A travessia foi longa. Ventos cruzavam o casco como lamentos. No convés, homens cantavam, praguejavam, morriam de febre e de fé. Freya — agora silenciosa entre redes e velas portuguesas — observava tudo com olhos lentos. A bordo do navio de Pedro Álvares Cabral, não era santa, nem prisioneira, nem besta. Era só... uma passageira sem tempo.
Quando avistaram terra, os marinheiros ergueram cruzes e bandeiras. Ela permaneceu sentada.
Vera Cruz.
A primeira terra onde as vozes do fluxo se calaram por completo. O Brasil ainda não sabia os nomes dos céus. As árvores eram mais antigas que a Bíblia. O solo respirava sem precisar de oração. E ali, Freya sentiu — pela primeira vez — que talvez o mundo ainda pudesse sobreviver sem deuses.
Capitulo VIII - O Sol Sangra na Mata
Ela chegou com o mar.
Não havia barulho, tampouco saudação. Nenhuma profecia antecedeu sua chegada. Não caiu do céu — apenas tocou a areia quente da nova terra, coberta de sal, de silêncio e de esquecimento. Deixou o nome no navio e pisou o solo como quem já pertencia a ele há séculos.
Os Guarani não a chamaram de bruxa, nem de santa. Apenas a olharam. Alguns riram. Outros temeram. Os mais velhos cochicharam que seus olhos pareciam ter visto o mundo antes de o tempo começar. E quando ela se calou — e foi muitas vezes — a floresta respondia por ela.
Deram-lhe um nome que não era nome, mas símbolo: Kurymbeka.
"Aquela que chegou quando a lua sangrava e não fugiu."
Os anos passaram como névoa leve.
Freya viveu entre os Guarani não como uma divindade, mas como uma irmã. Dormia em rede, caçava em silêncio, aprendia a moldar flechas e a pisar o chão sem acordar os espíritos. Pintavam seu corpo com urucum, enfeitavam-lhe os cabelos com penas. Seu tom de pele misturava-se ao barro. Sua alma, às danças noturnas.
Quando alguém morria, era ela quem carregava o corpo até o rio.
Quando alguém nascia, era ela quem cantava primeiro.
E mesmo sem querer, tornava-se memória viva daquela terra.
Porem nada dura para sempre, e assim começaram a se estabelecer ali, povos europeus, mas nem todos os portugueses vieram com sangue nas mãos.
Freya viu homens que se apaixonaram pelas filhas da mata, que aprenderam palavras indígenas, que choraram ao ver uma aldeia destruída. Viu alianças verdadeiras, trocas de sementes, casamentos cruzados, promessas feitas sem armas. E em cada uma dessas histórias, havia mais humanidade do que em todos os templos da Europa.
Mas o tempo não respeita pureza.
Vieram os engenhos.
Vieram os açoites.
Vieram os padres.
A floresta começou a recuar. A terra a arder.
E os nomes sagrados foram apagados em latim.
Freya tentou conter-se. Mas a cada criança batizada à força, a cada pajé calado sob a cruz, algo dentro dela estalava. As asas, antes recolhidas, pulsavam sob a pele. Os olhos ardiam à noite. E a auréola... já não brilhava com fé, mas com raiva contida.
Veio o tempo das missões.
Jesuítas ergueram igrejas onde antes haviam círculos de pedra. Trocaram rituais por confissão, e tentaram transformar os deuses da floresta em demônios com novas vestes. Os Guarani dividiram-se — entre os que buscavam proteção, e os que resistiam.
Freya não tomou partido. Mas também não permaneceu neutra.
Curava os feridos escondidos.
Protegia mães de filhos que os padres queriam tomar.
Invocava sombras para confundir bandeirantes.
E deixava marcas na terra — sinais de que a mata ainda tinha dono.
Chamaram-na de lenda.
Depois de fantasma.
Depois de ameaça.
Os anos avançaram. Os portugueses fundavam vilas.
Os espanhóis marchavam do sul.
Bandeirantes cruzavam o sertão como enxames de ferro.
E a terra... sangrava por todos os lados.
Freya viu quilombos nascerem como sementes no deserto.
Viu negros e indígenas unirem-se em fugas impossíveis.
Viu, nos olhos de uma velha curandeira negra, um espelho da própria dor:
— Eu também fui trazida por asas — disse a velha. — Só que as minhas foram cortadas antes de chegar.
Ela não respondeu.
Mas naquele dia, Freya chorou de novo.
Em 1615, rumores atravessaram o mar:
A Europa estava em guerra.
E com a guerra, veio a Ordem.
Um navio chegou ao sul do Brasil. Não trazia nome. Nem bandeira. Nem fé. Trazia homens com olhos sem alma, e um símbolo desenhado em metal —um círculo com três traços que formavam um “M” sobreposto, sinal da Ordem Mundial.
Freya sentiu antes mesmo de ver.
A terra emudeceu.
Os pássaros fugiram.
O rio parou.
— Eles vieram — disse. — Vieram para levar o que não pertence mais a eles.
Ela não lutou. Não queimou.
Apenas fugiu.
Entrou no primeiro barco que partia da Bahia com destino à Europa.
Sem nome. Sem bagagem.
Apenas uma cicatriz nova no peito...
E as asas, agora murchas, trêmulas, manchadas como se a própria floresta estivesse a morrer com ela.
Ao longe, os coqueiros desapareciam.
E o Atlântico, mais uma vez, engolia seu rastro.
Capítulo IX - O Dia em que Paris Silenciou
Ela voltou.
Não por escolha. Nem por saudade.
Foi o mundo quem puxou de volta aquilo que jamais devia ter regressado.
O navio aportou na costa atlântica da França em 1625. Chovia. Sempre chovia onde ela chegava — mas não era a água do céu, era a memória dos que chorariam depois. A embarcação que a trouxe da América desapareceu sem deixar rastro. Nenhum marinheiro foi visto de novo.
Alguns dizem que o mar os engoliu.
Outros, que ela os libertou.
Mas o silêncio com que desceu à costa... foi prenúncio.
A Europa estava em guerra.
Desde 1618, protestantes e católicos trituravam o continente como engrenagens enferrujadas. Um conflito de religião, poder e terra. De um lado, a fé em nome da ordem. Do outro, a fé em nome do grito.
No meio de tudo, ninguém sabia que o verdadeiro apocalipse caminhava pelas vielas de Paris — de pés descalços, asas enferrujadas e olhos rasgados pela culpa de séculos.
Freya não buscava guerra.
Mas a guerra já a habitava.
Ela tentou esconder-se.
Vestiu farrapos. Escondeu as asas sob mantos.
Mas a cidade a reconheceu mesmo assim — não com os olhos, mas com os ossos.
A fome de Paris aumentou nos dias seguintes à sua chegada.
As crianças pararam de sonhar.
Os sinos das igrejas racharam sem serem tocados.
E então, no dia 13 de março de 1627, uma freira gritou ao vê-la no mercado:
— A mulher com os olhos que queimam!
E o mundo caiu.
O colapso começou no coração.
Freya sentiu-se desmanchar por dentro. Não havia mais corpo para conter tanto tempo. A alma já não se encaixava na carne. Os nomes que recebera ao longo dos séculos giravam como lâminas na mente. E as vozes... as vozes não paravam mais de falar.
— Kurymbeka.
— Atemyia.
— Elisabeth.
— Freya.
Os olhos rasgaram-se em sangue.
As asas explodiram para fora como muralhas invertidas.
E a auréola... desfez-se em fragmentos, girando como luas negras.
O chão rachou.
Do meio da Place Dauphine, em frente à ponte de pedra, surgiu a Freya Apocalíptica.
Ela não gritou.
Ela apenas existiu — e isso bastou para que Paris queimasse de dentro para fora.
O céu escureceu. Relógios pararam.
Homens esqueceram seus próprios nomes.
Anjos apareceram em vitrais rachados, chorando sangue.
Os sinos tocaram sozinhos por sete dias.
A Inquisição foi convocada às pressas — não os inquisidores comuns, mas os ocultos, os da casta que servia ao mundo desde antes do batismo de Roma. Vestiam mantos negros, não falavam. Carregavam selos antigos e orações riscadas à faca.
Eles não conseguiram derrotá-la.
Mas, com o auxílio de artefatos proibidos, selaram-na.
Nas catacumbas de Paris, abaixo das igrejas que escondem ossos dos justos, construíram um templo invertido, feito de sal petrificado e vidro sagrado. Ali, Freya foi enclausurada em pé, entre espelhos e símbolos que a obrigavam a olhar a si mesma eternamente.
Aquilo não foi uma mera prisão. Foi punição. Foi silêncio. Foi esquecimento imposto….
E o mundo... respirou por fim. Deixando o erro divino se perder no esquecimento.

